domingo, janeiro 30, 2011

Bresson, Romero e Eastwood

O dinheiro, de Robert Bresson

- Depois que eu terminei de escrever o post anterior fiquei com a sensação de que deu a entender que eu era o responsável por haver descoberto o gênio de Bresson. Não sei... leio o texto de novo e essa impressão permanece. Coitado de mim, apenas me junto a uma legião de admiradores que compartilham da mesma opinião. Na verdade, sempre que termino algum filme dele me pergunto por que demorei tanto para assistir a outro. Dos quatro que já vi, Diário de um Pároco de aldeia (1951), Pickpocket (1959), O Processo de Joana D’Arc (1962) e O dinheiro (1983) todos me impressionaram muito. Em um primeiro contato, o estilo minimalista do diretor chama tanto a atenção que às vezes chega a atrapalhar o nosso envolvimento com o filme. À medida que nos acostumamos a ele, passamos a nos ater ao essencial - daí surge o filme. A lugubridade de O dinheiro me cortou a alma, ao contrário da esperança promovida por Pickpocket. Teria sido essa uma constatação, por parte de Bresson, de que o mundo piorou de 1959 para 1983? Prefiro acreditar em Pickpocket, mas acho que estamos mais para O dinheiro.

O Exército do Extermínio, de George Romero

- Com George Romero é assim: desde o início existe o caos. Sempre caímos de pára-quedas no meio do conflito, da disputa, do mal entendido e como em uma guerra somos testados e confrontados com o horror. De quem mais se espera lucidez, racionalidade e bom senso (essa palavra é sempre perigosa!) recebe-se estupidez e ignorância. Como bem lembrou Filipe Furtado, Romero certamente tinha em mente fazer uma alegoria sobre a Guerra do Vietnã quando realizou O Exército do Extermínio (1974) – a cena do ritual de auto-imolação evidencia isso. Trinta e cinco anos depois, sua alegoria se tornou profética: o que você considera uma perda aceitável em favor do bem da comunidade? Assisti ao filme com a ocupação do Rio de Janeiro na cabeça. Como em outros exemplares de Romero a ameaça vem dos vivos, não dos mortos.

Além da Vida, de Clint Eastwood

- Primeira cena: a câmera passeia lentamente por uma suíte em um hotel a beira mar. Um homem na cama. Tudo calmo. Pela janela, vemos o mar. Ao som do primeiro acorde já sabemos: estamos em um filme de Clint Eastwood - Além da Vida (2009). Como de hábito, o tema da morte. Os personagens de Eastwood quando confrontados com a morte não fogem a ela, não temem o seu encontro; ao contrário, a partir dele se fortalecem, afirmando seus vínculos terrenos. Cada personagem só existe por uma razão, uma tarefa, uma missão, sem a qual não há propósito para permanecer vivo. Lembremos da fala do cherife Little Bill (Gene Hackman) pouco antes de morrer em Os Imperdoáveis (1992) / “I don’t deserve this...to die like this. I was building a house!” /, ou do sacrifício do veterano Walt Kowalski (Clint Eastwood) em prol de uma causa em Gran Torino (2008), ou mesmo dos soldados japoneses em Cartas de Iwo Jima (2006)Além da Vida me lembrou mais A Troca (2008), em que Christine Collins (Angelina Jolie) mesmo diante de parcos vestígios da existência de seu filho - sumido e dado como morto pelas autoridades - se envereda por uma busca infrutífera; é a esperança de vida que a mantém viva. Todos os personagens de Além da Vida são, cada um a sua maneira, tocados pela morte. Quanto mais eles buscam saber do mundo de lá, mais eles se firmam no mundo daqui. O filme é cético em relação aos de lá, mas crente em relação aos daqui.

quinta-feira, janeiro 20, 2011

O dinheiro (Robert Bresson, 1983)


O enquadramento em Bresson é primoroso, preciso. Pleno de informação. Vejo seus filmes tão esvaziado de expectativas, quase como uma obrigação, e sempre, sempre, sempre, sou forçado a rever minha indiferença: ele é simplesmente um gênio.

Eu pensava que O dinheiro caminhava para um desfecho a la Pickpocket (1959), do mesmo Bresson, que aliás eu tenho em alta conta. Depois de uma hora de projeção, quando o verde toma conta da tela - a cidade sai de cena - e o campo empresta sua aura imaculada ao mundo sombrio que prevalecia até então, uma senhora em forma de anjo irrompe no quadro e desarma todo o preconceito que eu já começava a nutrir pelo protagonista. Em uma cena pra se guardar na memória, em registro idílico, autêntico, o herói se põe a coletar avelã para a senhora, enquanto ela pendura lençóis brancos em um varal ao sopro do vento vespertino.

Como dizia no início do post, o enquadramento em Bresson é tudo. Ao longo da projeção ele nos avisa qual será o paradeiro de seu herói. São inúmeras cenas de portas, grades, trincos, cadeados, gavetas. Está tudo confinado. Inclusive seu protagonista. Na verdade, todos nós.

Meu apreço por Aurora (2010), de Cristi Puiu, que eu não havia gostado tanto na ocasião da Mostra, até aumentou. Bendito seja Bresson!

domingo, janeiro 16, 2011

O que eu vi de melhor em 2010: nacionais

Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karim Ainouz, 2009) – qualquer filme, curta ou documentário que traga o nome dos dois envolvidos nesse projeto deve ser programa obrigatório. Ao invés de se construir o filme a partir de um roteiro, criou-se o roteiro a partir de imagens captadas na filmagem de outros trabalhos. Não é para todos os gostos, mas o espectador que embarcar na empreitada será agraciado com uma autêntica experiência cinematográfica. Road árido movie!

As melhores coisas do mundo (Laís Bodanzky, 2010) – parece que o cinema nacional começa a prestar atenção no seu público adolescente. Estou, naturalmente, desconsiderando os projetos anuais da Xuxa e as últimas tentativas de Renato Aragão. Antes disso, e ainda assim muito recentemente, só havia o Jorge Furtado. Laís consegue fazer um filme divertido, alto astral, competente e bastante honesto.

Os famosos e os duendes da morte (Esmir Filho, 2009) – a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. é fundamental para conferir ao filme o clima fantasmagórico que ele requer. De certa forma o oposto do filme da Laís: introspectivo, lento e melancólico. É difícil não compará-lo com as últimas incursões de Gus Van Sant pelo universo adolescente. Bela estréia de Esmir Filho em longa metragem.

Antes que o mundo acabe (Ana Luiza Azevedo, 2009) – outro belo filme que retrata os adolescentes, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre. A trupe de Jorge Furtado toma as rédeas do projeto e nos entrega mais do mesmo: um cinema jovem, no tema e na execução, cheio de vida e ávido para se comunicar. Do Rio Grande do Sul para o mundo. Uma pena ele não ter encontrado um público numeroso enquanto estava em cartaz. Merecia!

O homem que engarrafava nuvens (Lírio Ferreira, 2009) – a sessão que eu peguei do filme no Espaço Unibanco estava repleta de senhoras. A comoção ao final da projeção era geral. Tinha gente voltando pra assistir de novo. Não é pra menos: o filme traça um panorama amplo de uma fase de ouro da música popular brasileira e discute, conceitualmente, os dois grandes eixos em torno do qual essa música se articula – o samba e o baião. Nele, o nordeste é protagonista. O documentário faz jus a persona de Humberto Teixeira, fiel colaborador de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Já faz algum tempo que o melhor do cinema nacional vem do nordeste.

Dzi Croquettes (Raphael Alvarez e Tatiana Issa, 2009) – para pessoas como eu, que não sabia da existência do grupo, o documentário presta um serviço precioso. A palavra contracultura nunca fez tanto sentido pra mim: aqui, o corpo é a arma de protesto. O balé dos corpos assume outro significado, sem, no entanto, perder sua candura.

Uma noite em 67 (Ricardo Calil e Renato Terra, 2010) – belo documentário editado, sobretudo, a partir de material de arquivo. Ótima decisão dos realizadores de não interferir no material com uma narração em off. São apenas os personagens contando e recontando suas façanhas e performances da histórica noite em 67. A história é posta a limpo.

Tropa de Elite 2 (José Padilha, 2010) – outro soco na boca do estômago. Mais maduro e depurado que o primeiro. Nas palavras de Inácio Araújo: “... Pode-se discutir ao infinito os filmes sobre a ação do Bope e seu capitão Nascimento. Com eles, o morro não é mais caso de cultura ou distribuição de renda. O problema central é de polícia e de corrupção (corrupção policial sobretudo). “Tropa de Elite” faz tudo voltar ao começo: a questão da favela não é bem a favela, mas o fato de a sociedade ter acreditado, o quanto pôde, que deixando os seus pobres à margem evitaria o contágio da boa sociedade com a outra.” Assino embaixo.

Reflexões de um liquidificador (André Klotzel, 2010) – o filme que faltava para formar a trilogia brasileira do humor negro/macabro com O cheiro do Ralo (2006), de Heitor Dhalia e Estômago (2007), de João Miguel. Um pouco menos marcante e inspirado do que os seus antecessores, mas nem por isso menos interessante. Assim como nas outras produções o elenco da um show à parte, em especial Ana Lúcia Torres. Um tesouro a ser descoberto.

Os inquilinos (Sérgio Bianchi, 2009) – um filme mais acessível do Bianchi. Sua ira está mais contida, mas seu inconformismo permanece o mesmo.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

O homem que burlou a máfia (Don Siegel, 1974)


Quando chega o momento do filme O homem que burlou a máfia em que Walter Matthau paga uma de cafajeste e se deita com uma bela mulher nosso envolvimento com o seu personagem já é tamanho que essa improvável circunstância se torna crível. Nada contra o grande ator, que se encontra, provavelmente, em um de seus melhores momentos. Como os tipos que ele representou sempre divergiram um bocado desse galanteador, nos dificulta enxergá-lo nessa situação. Sem mencionar que seus traços não eram nada atraentes...

Matthau parece não se esforçar para representar o bandido Charley Varrick, que passa o filme fugindo da mira de um matador de aluguel contratado pela máfia para haver o dinheiro que lhes foi tomado em um despretensioso assalto a banco. A riqueza dos personagens secundários, tratados com o carinho e a atenção devidos, e as inteligentes e criativas soluções encontradas pelo roteiro para manter o nível da perseguição elevam esse filme a outra categoria. Claro, tudo funciona perfeitamente graças à direção segura de Siegel. Sem firulas.

O personagem da senhora - vizinha do trailer - é um achado. Lembra os irmãos Coen em seus momentos mais inspirados. O final é de se tirar o chapéu.

domingo, janeiro 02, 2011

O que eu vi de melhor em 2010: estrangeiros

* Vincere (Marco Bellochio, 2009) – cinema italiano em grande forma. Um filme à altura da matéria em questão: um estudo perfeito dos mecanismos empregados pelo Estado para se sustentar uma imagem, no caso a de Mussolini. Para afirmar o que se quer fazer crer como verdade, deve-se esconder o indesejado: no caso um filho. Choque de intenções e interesses. O melhor que se pode extrair desse conflito. Filmaço!

* Ervas Daninhas (Alain Resnais, 2009) – um senhor de idade brincando de fazer cinema. Quem brinca é ele, quem se diverte somos nós.

* O Profeta (Jacques Audiard, 2009) – surpresa vinda da França. Drama carcerário convincente, surpreendente, inesperado. Um personagem interessante, ainda que improvável. Em meio à barbárie, e valendo-se dela, um jovem árabe redime seus pecados e emerge como um verdadeiro profeta. O carisma do ator Tahar Rahim humaniza o personagem.

* Policia, Adjetivo (Corneliu Poromboiu, 2009) – os romenos estão com a bola toda. Registro minimalista fiel às tradições documentaristas do leste europeu. A Romênia de ontem e a Romênia de hoje. Um filme policial sem disparos nem sangue. Final antológico.

* Sempre Bela (Manuel de Oliveira, 2006) – Buñuel por Oliveira. Um reencontro com os personagens de A Bela da tarde (1967). O domínio da mis-en-scène é tamanho que Oliveira nem parece se esforçar: o filme é um deleite para os olhos e ouvidos. Vale a espera pela grande cena do jantar.

* Ilha do medo (Martin Scorsese, 2010) – “Até onde me lembro, a questão central para mim era: O que é preciso para ser um cineasta em Hollywood? Mesmo ainda hoje me pergunto o que é necessário para ser um profissional, ou mesmo um artista, em Hollywood. Como você sobrevive a constante queda de braço entre a expressão pessoal e os imperativos comerciais? Qual é o preço que se paga para trabalhar em Hollywood? Você acaba com dupla personalidade? Você faz um filme pra eles e um pra você?

O comentário é do próprio Martin Scorsese e integra o documentário A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies (1995). De todos os filmes que Martin Scorsese fez para “eles”, talvez esse seja o mais “seu”. Scorsese se apropria de material alheio.

* O escritor fantasma (Roman Polanski, 2010) – cinza, cinza, cinza. Não há raios de sol na paisagem de Roman Polanski. Quanto mais o filme avança, mais escuro ele fica. Elegante, sombrio e afiado. Thriller político de altíssimo nível de um dos mestres do terror sugestivo. A violência espreita, mas demora a dar as caras.

* Minha terra, África (Claire Denis, 2009) e Um homem que grita (Mahamat Saleh Haroun, 2010) – relatos do continente africano de dois diretores de “dentro”. Duas versões para o mesmo drama: a guerra civil que assola o continente. O final da história nós já sabemos. Que me perdoem os apreciadores dos filmes de Terry George, Hotel Ruanda (2004), e Edward Zwick, Diamante de Sangue (2006): a África não é Hollywood.

* Eu matei a minha mãe (Xavier Dolan, 2009) – ame ou odeie, essa parece ser a reação que o filme desperta nas pessoas. Eu saí do cinema revigorado: relato fresco, vigoroso e enérgico da relação conturbada entre mãe e filho. Geração anos 90 na frente e atrás das câmeras. O renomado psicólogo Contardo Calligaris escreveu o melhor ensaio sobre o filme (http://contardocalligaris.blogspot.com/2010/10/eu-matei-minha-mae.html)

* À prova de morte (Quentin Tarantino, 2007) – tivesse eu visto o filme em 2007, o impacto não teria sido o mesmo. Típico filme de realizador após emplacar um grande sucesso nas telas: descompromissado. Tratando-se de Tarantino soa redundante, pleonástico. Todo filme parece uma grande festa. É revigorante assistir a uma perseguição de carros sem o auxílio exaustivo dos efeitos especiais. Estou à procura de Corrida contra o destino (Vanishing Point, 1971), de Richard C. Sarafian.

* Como treinar o seu dragão (Dean Deblois e Chris Sanders, 2010) – o sucesso tremendo de Toy Story 3 (2010) ofuscou o reconhecimento que esse filme viria a receber na temporada de premiações. Uma pena, meu voto vai para ele. Mesmo sendo um ferrenho defensor da Pixar – fomos todos mal acostumados por ela com as sucessivas obras-primas (Ratatouille, Wall-E e Up) – a originalidade esse ano partiu da Dreamworks. A melhor aventura do ano!