segunda-feira, abril 30, 2012

Girimunho (Helvécio Marins Jr e Clarissa Campolina, 2011) e O Homem que Não Dormia (Edgard Navarro, 2012)


Na última semana, antes da viagem a São Paulo, eu vinha ansioso para conferir a programação de sexta feira no CCBB, Abel Ferrara e a Religião da Intensidade. Inclusive, quase cheguei a postar alguma coisa a respeito. É verdade que outros dias apresentavam uma seleção de filmes mais significativos, mas infelizmente incompatibilizavam com a minha disponibilidade. Ao conferir a programação com mais cuidado, notei que dois dos filmes seriam exibidos em DVD, Cat Chaser (1989) e Crime Story (1986). Minha empolgação logo se transformou em frustração.

Pra minha sorte, estreavam no circuito comercial de São Paulo os filmes nacionais Girimunho e O Homem que Não Dormia. O Girimunho eu já havia visto na Mostra do ano passado, ou pelo menos eu havia tentado vê-lo, já que, conforme relatado no link acima, o cansaço da última sessão daquele dia me sacrificou algumas passagens do filme. Minha recusa em opinar na ocasião se provou certa: descobri que acabei perdendo mais da metade da projeção. Fiz muito bem em "revê-lo" pra tirar a prova daquilo que perdera.


Girimunho

Mais um filme nacional que explora a fronteira entre a ficção e o documentário. Eu confesso que tenho um interesse especial por esse tipo de produção, pois se trata basicamente da tentativa de se "recriar uma realidade". De certa forma, ao propor essa condição inalcançável, contribui-se, paradoxalmente, para escancarar o artificialismo do processo cinematográfico. É tudo uma questão de trabalhar esses indícios a fim de que eles se apresentem menos evidentes ao espectador - maquiá-los por completo, a ponto de quase eliminá-los,  é a busca contínua dos diretores. Sendo assim, quanto melhor mascarados eles estiverem, melhor será a avaliação do filme. Girimunho é muito bem sucedido nesse sentido e não é à toa que vem sendo considerado por alguns como um dos grandes filmes brasileiros da safra recente de produções. Chama atenção particularmente a maneira como os cineastas empregaram o som para incorporar os elementos da realidade abordada - dos objetos em cena, da Natureza e das cantigas de Maria da Conceição. A imersão do espectador naquela realidade depende muito do efeito desse recurso (sua influência é enorme, ainda que seu reconhecimento seja quase imperceptível).


O Homem que Não Dormia

Um filme que desperta reações extremas: ama-se ou odeia-se. Eu integro o primeiro time com afinco e já o considero o melhor nacional do ano até agora (embora a produção seja do ano passado). Um petardo sem precedentes, baianíssimo (a Bahia é o berço de Navarro), com pitadas de Glauber Rocha, Buñuel, Pasolini e Cinema Marginal. Na primeira metade da projeção Navarro opera próximo ao registro do terror fantástico (aliás, rico em referências ao folclore nacional), e por mais bizarro que seja, e de fato o é, resulta memorável, inesquecível. Depois, a ironia e a irreverência tomam conta do destino de cada um dos personagens - talvez seja um pouco disso que eu sempre senti falta no cinema do Cláudio Assis (Amarelo Manga e O Baixio das Bestas), mesmo defendendo-o. Uma obra fragmentada, ousada, provocadora, abusada e corajosa que eu abracei com entusiasmo exacerbado. Não é todo dia que se vê um filme dessa envergadura. Minha porta de entrada para o universo de Edgard Navarro.

sábado, abril 21, 2012

Dois filmes nacionais



Transeunte (Eryk Rocha, 2010)

No post dos Melhores Filmes Nacionais de 2011 eu lamentava o fato de haver perdido as exibições de Transeunte em minhas visitas a São Paulo no ano passado. Por sorte, o filme chegou a Ribeirão Preto como integrante do Festival SESC Melhores Filmes 2012 em impecável cópia 35 mm.

É um encontro bem sucedido entre forma e conteúdo, numa proposta que explora as fronteiras do formato documentário x ficção. O filme é basicamente um road movie no centro da cidade do Rio de Janeiro, com um homem de meia idade solitário, Expedito (o extraordinário Fernando Bezerra), perambulando pelas ruas da capital carioca. Dotando seu personagem apenas de um surrado radinho de pilha - adesivado com a palavra Mengão -, Eryk Rocha estabelece uma curiosa e criativa fusão sonora entre os ruídos da cidade grande (o ambiente que cerca o protagonista) e a programação recorrente das AMs (representando o seu foro íntimo). Seu personagem emerge dessa improvável, porém frutífera, interação. A cena do jogo do Flamengo no Maracanã, em que a emoção contida de Expedito irrompe, é antológica.

José Geraldo Couto escreveu um belo post do filme na ocasião do seu lançamento no circuito comercial comparando-o ao também ótimo Ex-Isto (2010), de Cao Guimarães.


Heleno (José Henrique Fonseca, 2011)

Menos um filme sobre o futebol do que sobre o universo que cerca esse esporte (perfeitamente cabível em outros esportes também). É um verdadeiro caracter study, que, embora retrate uma figura dos anos 1930 e 1940, ressoa forte no nosso mundo contemporâneo de pseudo-celebridades. Rodrigo Santoro se entrega de corpo e alma ao personagem, beneficiando-se do estilo histriônico e expansivo do mitológico Heleno de Freitas. Um homem de personalidade forte que cavou sua própria cova, tamanha a negligência com que conduziu a própria vida. Não compartilho de todo o entusiasmo do meu amigo Gilles Maciel pelo filme (foi coroado com nota 10 no nosso Papo de Buteco), mas enxergo uma evolução absurda em relação ao projeto anterior de José Henrique Fonseca, O Homem do Ano (2003). Walter Carvalho, como de hábito, deixa a sua marca indelével na direção de fotografia.

segunda-feira, abril 16, 2012

Xingu (Cao Hamburguer, 2012)



Partamos do seguinte princípio: a trajetória dos Irmãos Villas-Bôas é tão rica que não há projeto audiovisual capaz de abordar toda a dimensão das conquistas acumuladas em mais de 50 anos de trabalho em prol da causa do índio. Qualquer ângulo de abordagem adotado pelos interessados deve primar mais pelos sacrifícios - por sacrifício entenda-se o volume de material em potencial que será descartado - do que pelo que de fato será aproveitado. É um trabalho árduo, cheio de armadilhas e tentações que tende a resultar menos satisfatório à medida que o escopo da empreitada aumenta - e a equipe tenta dar conta de tudo - e o foco se dispersa.

Cao Hamburguer foi certeiro ao dimensionar bem seus personagens e concentrar seus esforços nas transformações (sobretudo psicológicas) do trio central, dotando cada um dos irmãos de características fortes e distinguíveis, conflitantes porém complementares, de modo a extrair das diferentes personalidades o ímpeto necessário para dar vida a um projeto tão romântico/utópico quanto ambicioso/necessário: a criação do Parque Nacional do Xingu ou Parque Indígena do Xingu.

A complexidade do projeto é soberbamente captada por Cláudio (João Miguel, o mais idealista) na conversa com seu irmão Orlando (Felipe Camargo, o mais pragmático) em um momento de absoluta descrença sobre os reais efeitos da intervenção deles junto aos índios, "Tem alguma coisa neles que morre para sempre assim que a gente encosta". É certo que os Villas-Bôas também experimentaram instantes de dúvida e de fraqueza, o que só faz aumentar a dimensão da conquista. A inesquecível imagem que fecha o filme não teria o mesmo impacto caso os irmãos fossem tratados como seres infalíveis. Já dizia a sarcástica expressão proferida por Billy Wilder, "no good deed goes unpunished".

quarta-feira, abril 11, 2012

Videodrome (David Cronenberg, 1983)




O crítico R. Barton Palmer levanta uma hipótese interessante quando coloca que "a história de David Cronenberg sobre as horríveis transformações geradas pela exposição à violência televisionada, aborda habilmente os problemas que o próprio diretor havia tido com censores, distribuidores de Hollywood e grupos feministas por conta da exploração de imagens de violência sexual em suas produções anteriores." Essa livre interpretação do filme enriquece a sua análise, uma vez que aproxima o seu idealizador do seu objeto de estudo.

Na verdade, Videodrome é o primeiro filme em que as obsessões e o estilo que fizeram a fama de Cronenberg se manifestam em toda a sua plenitude. Não fosse a mente perturbada do diretor canadense (peço licença pra me servir do cliché comumente associado à figura do cineasta) o filme não passaria de um noir ordinário: um produtor de TV inescrupuloso (James Woods) se dá conta, por meio de uma inspiradíssima femme fatale (Deborah Harry), de que não passa de um intermediário em um complexo esquema severo de manipulação de mentes e desejos - o matrix de Cronenberg quase vinte anos antes do Matrix (1999) dos irmãos Wachowski, bem menos estilizado e muito mais interessante.

A ideia (recorrente em cinema) do protagonista que se apaixona por uma imagem (não necessariamente pelo objeto) é levada ao extremo em Videodrome. O filme aborda, dentre outras coisas, a vertente nefasta da relação homem x imagem (no caso a TV, mais precisamente o vídeo - lembremos que o filme é do início dos anos 80). É impossível prever nos primeiros minutos de projeção que o filme nos conduzirá às mais recônditas e bizarras manifestações do subconsciente - dos deles (o diretor e seu protagonista) e do nosso. Os eventos se sucedem naturalmente, em um ritmo vagaroso, contrastando com a extravagância das questões que emergem na tela. A opção acertadíssima de evitar um cenário futurista, ou retrô carregado, ou qualquer alternativa que nos afaste da "nossa realidade", contribui para o efeito de estranhamento que a trama nos proporciona. Eu gosto particularmente da maneira como o filme nos envolve sem chamar a atenção para a sua excentricidade.

A filmografia de Cronenberg é repleta de referências ao sexo (o ato sexual e a sexualidade) e a violência, bem como aos efeitos dessa combinação. Dada a natureza instintiva de ambos, não espanta que seus personagens se comportem, por vezes, como animais selvagens. A Mosca (1986) é a metáfora perfeita dessa condição. No entanto, a imagem que melhor ilustra essa combinação em toda a filmografia de Cronenberg se encontra em Videodrome: a pistola na mão de James Woods (representando seu pênis) com o cano a acariciar o “inexplicável” orifício (remetendo a uma vagina) formado em sua barriga.

É um cinema de vícios e que vicia. Sem contra indicações.