segunda-feira, abril 21, 2014

Os Pássaros (Alfred Hitchcock, 1963)




Já se vão quase 18 anos desde que assisti a Os Pássaros pela primeira vez em uma cópia surrada de VHS. Em visita a São Paulo na última semana para um ciclo de palestras, aproveitei a ocasião para redescobrir o filme em uma sessão mais apropriada: cópia restaurada no cinema.

Quando do primeiro contato, recordo-me de haver lido uma resenha relativamente longa do filme fazendo uma aproximação muito interessante, ainda que de difícil compreensão pra mim na ocasião, entre a natureza sexual da protagonista (Tippi Hedren) e o ataque inexplicável dos pássaros à baía de Bodega Bay. Naquela altura do campeonato, não consegui ver nada além de um filme de terror bem orquestrado (por ventura, até supervalorizado). As implicações sexuais da trama (implícitas), recorrentes na obra de Hitchcock, me passaram batido, apesar da sensualidade quase vulgar de Tippi Hedren (explícita), decorrente da mente maliciosa do diretor.

Desta vez, minhas antenas estavam sintonizadas no teor erótico da produção, conduzido nas entrelinhas por Hitchcock, como de hábito, o que dificulta um olhar cinematográfico menos treinado a reconhecê-lo. Embora essa carga de sexualidade se manifeste por meio da atração existente entre Melanie Daniels (Tippi Hedren) e Mitch Brenner (Rod Taylor), a abordagem dela a que me refiro remete muito mais a psicanálise freudiana, representada na libido, que nada mais é do que “a energia fundamental do ser vivo que se manifesta pela sexualidade" (dicionário priberam).

É bem mais conhecida, bem como aceita, a interpretação de que o ataque dos pássaros a Bodega Bay seja atribuído a uma obra de Deus, que se reserva no direito de manter sob sigilo as razões que o levaram a tanto, seja para essa intervenção pontual ou outras que nos acometeram naturalmente no curso de uma vida. O recurso empregado que fundamenta essa interpretação é a angulação da câmera ao estabelecer o ponto de vista de uma ave, visto de cima para baixo, perfeitamente confundível com o que seria o ponto de vista de Deus. Além do mais, quem conhece a obra de Hitchcock e o subtexto religioso que a influencia, pronunciadamente católico, reconhece essa leitura do filme como perfeitamente aceitável.

O livro After Image de Richard A. Blake aprofunda essa análise do filme dentro desse contexto do catolicismo:

The birds are, of course, the central figures in the film and the most difficult to categorize. Although it is tempting to allegorize them too explicitly, it seems most consistent with Hitchcock´s earlier works to regard them simply as the embodiment of mindless, irrational Nature, the agent of chaos in the universe. In Catholic terms, their material presence is a “sacrament” of spiritual uncertainty in a very ambiguous world. During long stretches in the film their role is benign; they are simply there, as part of the landscape, but their most startling characteristic is their unpredictability. What prompts their unprovoked attacks? Why do their victims include innocent children? Why do they stop and wait? Although they hold the potential for extraordinary destruction, they are not necessarily evil by nature; they simply are, and as brute reality beyond human control and understanding they are extremely threatening. Explanations of their behavior are consistently hollow and unsatisfactory.

Enfim, deixo a abordagem sacra do filme, exaustivamente explorada ao longo dos anos, para especular o lado profano da proposta. O livro 1001 filmes para ver antes de morrer, na colaboração de Joshua Klein, sugere uma "alegoria sexual misógina, onde o único macho é Taylor, que está cercado de diversas mulheres a disputar sua atenção". Entretanto, sem se curvar por completo a essa interpretação, ele continua dizendo que "o tema do filme permanece dúbio, na melhor das hipóteses, com Hitchcock privilegiando o horror e os efeitos assustadores".

A tensão sexual se estabelece logo nas primeiras cenas (o assobio que introduz o filme e a longa conversa dentro do pet shop), de forma que as intenções de Melanie Daniels são prontamente reveladas ao espectador. O curioso é que ela encara o assobio e o diálogo mal intencionado travado com Mitch Brenner (com segundas intenções) como se estivesse o tempo todo com a situação sob controle. Em ambas as circunstâncias ela é traída pelo excesso de autoconfiança, decorrente, na minha interpretação, da condição social que ela ocupa (alta sociedade, filha de empresário bem sucedido que tudo pode) e, sobretudo, da beleza descomunal de sua intérprete, Tippi Hedren. Nenhuma dessas fortalezas exigiu o seu esforço para serem construídas; elas lhe foram simplesmente agraciadas.

Essa combinação é muito bem explorada por Hitchcock, ao criar uma tensão interessante entre a imagem (pudicícia, nobre) e o seu conteúdo (despudorado, baixo), resultando em uma vulgaridade apreciável/provocadora: Melanie desfila o tempo todo impecavelmente vestida, maquiada e "ornamentada", "vendendo" a impressão de "comportada", ao passo que suas atitudes e comportamentos (explicitadas em poucos minutos) denotam um turbilhão de sensualidade enclausurado dentro dessa "casca de civilidade". Essa energia "presa", de natureza selvagem, luta desde o início para ser libertada.

Aqui, cabe um paralelo com uma personagem de um livro de Stephen King, Carrie, adaptada para o cinema por um fiel discípulo de Hitchcock, Brian de Palma, em 1976. As energias que emanam de Melanie e Carrie são da mesma natureza, inexplicáveis e irracionais, fruto da sexualidade incompreendida, embora se materializem cinematograficamente de formas distintas: na primeira, uma invasão de pássaros (alegórica); na segunda, poderes telecinéticos destrutivos (precisamente). Essa "energia sexual" se manifesta quando suas vítimas se veem contrariadas, sob um verniz temível. Uma vez que o gatilho é acionado, nem mesmo quem a concebe é capaz de contê-la - a sexualidade feminina como uma verdadeira força da Natureza.

Em Bodega Bay, Melanie faz um exercício de investigação para descobrir a residência de Mitch Brenner - atrevida, já que sua visita não é aguardada, ela se candidata a lhe entregar pessoalmente o casal de periquitos que os levou ao desentendimento verbal no pet shop de São Francisco. Esse atrevimento causa uma má impressão nos habitantes da pequena Bodega Bay, que não tardam a enxergá-la como uma ameaça - o mal estar pode ser ocasionado pela oposição entre a cidade e o campo, ou a sofisticação e a simplicidade, e pela vulgaridade explícita de Melanie (um verdadeiro furacão de sensualidade). Quando os pássaros começam a atacar os habitantes em Bodega Bay, não são poucos a responsabilizá-la pelo ocorrido.

Mother in diner: Why are you doing this? Why are they doing this? They said when you got here the whole thing started. Who are you? Where did you come from? I think you're the cause of all this. I think you're evil. EVIL!

Essa energia maligna que "ocasiona o ataque" só cessa de lançar-se sobre a pacata Bodega Bay quando ela se volta contra a própria Melanie. Os pássaros, que a materializam, só aquietam seu instinto assassino depois de se voltarem contra a sua "própria causa". Visto dessa forma, o ataque dos pássaros a Melanie não poderia ser interpretado como uma relação sadomasoquista? Essa "energia sexual", selvagem, irracional, inexplicável e incompreendida alcança seu auge no momento em que Melanie recebe um sofrimento físico, inconscientemente desejoso, filmado de forma agonizante, e seguido de uma calmaria desconfiável.

Vi a cena desta vez pensando na personagem Joe (Charlotte Gainsbourg) de Ninfomaníaca (2013), de Lars Von Trier, cujo tratamento dado à questão não encontraria espaço em 1963. Von Trier é explícito, inclinado a uma polêmica que lhe sirva de promoção comercial para seus próprios filmes. Seu cinema busca o impacto, o choque. Hitchcock é mais elegante, explora a psicanálise nas entrelinhas, sem que para isso tenha de abrir mão do caráter distrativo inerente ao seu ofício. A censura de outrora exigia dos cineastas encontrar formas mais criativas de manipular o material a fim de evitar que os mesmos fossem reprovados. Compará-los sem considerar o contexto das circunstâncias em que foram criados é injusto, o que não impede alguém de eleger suas preferências. Curioso como minha mente tenha recorrido a um tratamento mais explícito da questão, para só então estabelecer a cognição necessária à interpretação sugerida nesse raciocínio.

Os periquitos, ou lovebirds (pássaros do amor, em tradução livre), são os únicos pássaros que não se rebelam contra os residentes de Bodega Bay. Entram mudos e saem calados da cidade. O desejo sexual explorado pelo subtexto do filme não permite que o amor se pronuncie.

sábado, abril 12, 2014

Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978)


Eu sou da geração que estabeleceu contato com o trabalho de Arnaldo Jabor pela televisão, via Rede Globo, como comentarista político do Jornal Nacional, num tempo de exposição relativamente curto, beirando um minuto, todavia suficiente para que ele expusesse sem firulas nem "papas na língua" as contradições da complexa realidade brasileira. Depois, ou ao mesmo tempo (já não me recordo mais), ele estendeu sua contribuição crítica para assuntos mais abrangentes, flertando com a crônica de costumes fortemente influenciada por Nelson Rodrigues, de um humor cáustico característico, nos jornais impressos Folha de S.Paulo, inicialmente, e O Estado de S. Paulo, posteriormente. Em breve consulta ao Wikipedia, fiquei sabendo que antes de criar seu "personagem televisivo" ele já escrevia para o jornal O Globo, tornando-se colunista numa tentativa de reinventar a sua carreira artística, fortemente comprometida pela gestão desastrosa do então presidente Fernando Collor de Mello, responsável pelo sucateamento da produção cinematográfica nacional - ao decretar a extinção da Embrafilme em 1990.

Enfim, só tomei conhecimento de seus filmes quando a Versátil resolveu lançá-los, nos anos 2000, só vindo a realmente conhecê-los um pouco mais tarde.  Ainda aguardo a oportunidade para ver Eu te Amo (1981) e Eu Sei que Vou Te Amar (1986). Aparte o resultado alcançado com A Suprema Felicidade (2011), tentativa mal sucedida de se reproduzir o onirismo feliniano, mais especificamente de Amarcord (1973), todos os outros longas vistos me deixaram bastante entusiasmados.

Tudo Bem é o filme de Jabor mais sintonizado com o trabalho que ele se prestou a realizar mais tarde como jornalista/cronista. Dentro do apartamento em reforma do casal Juarez Ramos Barata (Paulo Gracindo) e Elvira Barata (Fernanda Montenegro), o diretor cria um microcosmo muito bem representativo do Brasil industrializado de então, recém-saído do milagre econômico (a produção é de 1978), que acabara de experimentar um dos maiores fluxos migratórios da história. Nesse espaço limitado, claustrofóbico, ainda que bem explorado (destaque para a direção de arte), coabitam a classe média, proprietária do imóvel, beneficiada pelo ciclo inédito de desenvolvimento do país, e a massa migratória, operária, miserável, com a renda sendo corroída pela desvalorização da moeda, "vendendo o almoço para comprar a janta". O choque proporcionado pelas diferenças culturais, de renda e educação entre as classes era tão evidente que não havia como ser facilmente maquiado, apesar do esforço do governo militar para vender a ilusão de "Brasil Grande", viga mestra da sua política de sustentação publicitária (Wikipedia).

A galeria de tipos criados por Jabor, fortalecida pelo rol de atores que os personificaram, é digna de antologia. Desde os três fantasmas que atormentam Juarez Barata, numa combinação que bem poderia ser a sua consciência (ou, a consciência da burguesia brasileira), com Fernando Torres, Jorge Loredo e Luis Linhares, até os operários (pedreiros) da reforma, muito bem representados por José Dumont - a cena do acolhimento altruísta da sua família é uma das melhores do filme (promove uma sequência irônica matadora). A curta aparição de Paulo César Peréio no desfecho é de rachar o bico - poucas vezes seu estilo debochado de interpretação casou tão bem com o propósito do seu personagem.