sábado, janeiro 31, 2015

A mise en scène no cinema

Embora eu tenha comprado o livro A mise en scène no cinema – Do clássico ao cinema de fluxo, de Luiz Carlos Oliveira Jr., ainda em 2013, só retomei a leitura recentemente. Folheando os capítulos seguintes da publicação (encontro-me na Parte 1, Capítulo 3), parece-me que a ideia do autor é problematizar/questionar o termo que balizou por muito tempo a discussão acerca da cinefilia.  Mas antes de fazê-lo, como já fica evidente na Parte 2 – “Onde está a mise en scène?”, Luiz Carlos procura contextualizar o termo desde a sua origem, no âmbito do teatro, para justificar a sua “apropriação” pelo cinema – sacramentada pelos colaboradores da revista Cahiers du Cinema, Jacques Rivette, François Truffaut, Eric Rohmer, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol, na década de 1950. O cinéfilo que já acumula alguns anos de estrada é mais familiarizado com a expressão, de forma que o seu vocabulário cinematográfico não sobrevive/fica incompleto sem a sua utilização. Já o iniciante pode encontrar uma boa introdução à sua importância no trecho abaixo, extraído do próprio livro, devidamente contextualizado.

Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

A “política dos autores” inventada pela ala jovem da redação dos Cahiers du Cinema tinha uma interessante premissa, hoje bastante conhecida, segundo a qual era justamente em Hollywood, sob a pressão de grandes produtores e no seio de um conjunto de regras técnicas e profissionais, que a assinatura de um autor podia provar que seu lugar de inscrição era mesmo a mise en scène. Não raro privado da escrita do roteiro e/ou impedido de exercer qualquer controle sobre a montagem, ao diretor hollywoodiano só restava concentrar sua expressão artística individual naquele conjunto de fatores – incluindo iluminação, perfomances, gestual, enquadramento, decupagem, angulação, etc. – que ele podia controlar durante a filmagem, no ato da encenação. Em suma, restava-lhes a mise en scène. No âmbito da crítica e da reflexão teórica sobre o cinema, a “política dos autores” era uma maneira de “associar de um modo irreversível a adesão a um cineasta e a compreensão de seu universo formal, pessoal; para dizê-lo em poucas palavras: sua visão de mundo” (Antoine de Baecque). E como um cineasta expressa a sua visão de mundo? Para os textos fundadores da política dos autores, só há uma resposta: pela mise en scène. A única política dos Cahiers consistirá, então, em falar da estética dos filmes, da sua realização. A moral de um filme, seu conteúdo, sua mensagem, está intimamente relacionada à forma cinematográfica empregada pelo autor (enquadramentos, movimentos de câmera, montagem, etc.). Desfaz-se a hierarquia entre grandes e pequenos temas, boas e más mensagens. “O que define um grande filme, o que impõe um grande tema, o que faz com que chegue uma mensagem, é a verdade de sua mise en scène” (Antoine de Baecque).

sábado, janeiro 24, 2015

O que eu vi de melhor em 2014 - nacionais

A Cidade é uma Só (Adirley Queirós, 2011) - eu o vi logo depois de conferir Branco Sai, Preto Fica (2014) na Mostra do ano passado. Foi o melhor filme brasileiro da nova safra que eu assisti no ano. Embora a produção seja de 2011, eu me senti na obrigação de relacioná-la aqui. Mais uma vez, fui salvo pela programação do Canal Brasil. Um híbrido ficção-documentário de cunho altamente político que ganha vida por meio da utilização criativa da música - esse recurso também é empregado no filme seguinte do diretor de forma um pouco menos fluente.

O Menino e o Mundo (Alê Abreu, 2013) - ninguém começa assistindo a essa produção ciente de onde ela será capaz de nos conduzir. Seus traços singelos enganam, a ponto de subestimarmos seu potencial. Ao fim, todos se sentirão recompensados com uma bela surpresa. O Brasil entra no mapa da animação mundial.

Quando eu era Vivo (Marco Dutra, 2014) - o coletivo paulista Filmes do Caixote mais uma vez dando uma bola dentro num universo pouco explorado pelo cinema nacional: o filme de terror. Espremido entre os lançamentos oscarizáveis do início do ano, o filme aportou em Ribeirão meio por acaso. Suas imagens permanecem vívidas comigo até hoje. Um casting relativamente inusitado, que acaba rendendo um conjunto bem afiado.

O Lobo Atrás da Porta (Fernando Coimbra, 2013) - já se vão quase 15 meses desde que o vi na Mostra de São Paulo de 2013. O que permanece é menos a polêmica da situação retratada e mais o exercício de direção de Coimbra, bem como a excelência da interpretação de todo o elenco. Uma bela tentativa do cinema tupiniquim de se produzir um thriller de qualidade.

Avanti Popolo (Michael Wahrmann, 2013) - esse talvez seja o patinho feio da seleção. A herança do governo militar condensada na rotina de uma família profundamente afetada por ela. Os registros caseiros em Super-8 servem tanto para resgatar o tempo perdido (pessoal ou coletivo), como para refletir o papel do cinema na construção da memória. Partindo de uma família fissurada se chega a toda uma nação. A abordagem evita o lugar comum da dramaturgia, frequentemente preocupada em simplificar o conflito num duelo entre "mocinhos e bandidos".

Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012) -  o cinema pernambucano batendo cartão novamente. Desta vez, a violência cede espaço para a busca pela conciliação. A tomada de consciência da protagonista (bem como do público), num "árido movie" que escancara as diferenças sociais que separam o universo dela do restante do sertão nordestino. Um rito de passagem prosaico, ainda que muito bem erigido.

Mataram Meu Irmão (Cristiano Burlan, 2013) – vale estar por aqui só pela entrevista na praia, aproximadamente na metade do longa, com um dos amigos do falecido. É difícil encontrar esse grau de exposição e discernimento em um documentário. O diretor faz das suas dores as nossas.

O que eu vi de melhor em 2014 - estrangeiros

O Ato de Matar (Joshua Oppenheimer, 2013) - de todos os filmes relacionados aqui, esse deve ser o menos comercial deles (trava uma briga feia com Cães Errantes). Que isso não sirva de desculpa para se evitar o que talvez seja um dos mais importantes documentários contemporâneos. Um verdadeiro soco no estômago. Busco socorro no blog do Filipe Furtado, “O resultado final é um filme sobre a violência da linguagem, linguagem da história, mas também linguagem do cinema, e as formas como ambas terminam cúmplices do discurso oficial (o extermínio de "comunistas") não importa o quão demente este seja”. Reitero o que escrevi no post anterior ao sugerir uma ótima sessão double bill com A Imagem que Falta (Rithy Pahn, 2013).

Sob a Pele (Jonathan Glazer, 2013) - quando a música e as imagens se complementam em um curioso efeito simbiótico. Um filme de atmosfera, que conta com um casting perfeito de Scarlett Johansson abdicando do status de estrela para encarnar um alien em processo de humanização numa Escócia aterrorizante. A perseguição na floresta, com a consequente captura da criatura e o "descolamento da pele" é antológica.

Inside Llewyn Davis (Joel e Ethan Coen, 2013) - eu andava meio impaciente com os irmãos Coen, sem experimentar em suas produções recentes o mesmo entusiasmo que as anteriores já me proporcionaram quando dos seus lançamentos. Este filme reacende a chama do meu interesse por eles, que andava meio apagada. Dos tempos em que a galeria de tipos criada pela dupla era digna de memória. De quebra, trouxe Oscar Isaac para o primeiro time de Hollywood.

Era Uma Vez em Nova York (James Gray, 2013) - melodrama de primeira linha pelas mãos de um dos mais talentosos diretores norte americanos em atividade. A última cena é simplesmente antológica, digna de qualquer lista séria que se preste a esse fim. Em apenas uma tomada ela sela o destino dos dois protagonistas que duelaram o filme todo na tentativa de conciliar o irreconciliável.

Amar, Beber e Cantar (Alain Resnais, 2014) - numa ida à capital eu peguei uma sessão dele às 0h (zero horas). Briguei um pouco com o sono e deixei a sala certo de que se tratava de um Resnais menor. Foi preciso outro filme do diretor, Melô (1985), pra me restaurar o brilho que eu havia perdido. Um assunto denso (de uma forma ou de outra todos os filmes de Resnais tratam da morte), tocado com a leveza notável de sempre. Fará muita falta!

O Grande Hotel Budapeste (Wes Anderson, 2014) - eu sempre fui um pouco desconfiado com o hype gerado em torno da carreira do diretor. Embora o seu talento seja inegável (bem como sua assinatura seja facilmente reconhecível), seus filmes comumente me despertavam mais curiosidade do que propriamente entusiasmo. Dessa vez eu realmente me diverti com a proposta, devidamente apropriada de um autor (Stefan Zweig) que dificilmente se associaria ao seu universo.

Cães Errantes (Tsai Ming-liang, 2013) - a exploração imagética do homem em meio ao caos urbano contemporâneo; do corpo e do espaço que o rodeia. Uma coleção vigorosa de situações bem encenadas e enquadradas, que dão conta de um homem no limite da sua sanidade mental, em decorrência da miséria material em que se encontra. Não é pra todos os gostos. O desfecho não alivia a barra para o espectador.

Nebraska (Alexander Payne, 2013) - o diretor sempre trabalhou o universo indie com um pezinho fincado no mainstream. Seus projetos nunca abdicaram de nomes de peso para se materializarem (provavelmente uma exigência dos produtores). Desta vez, o cineasta não só resgatou Bruce Dern do limbo, como convenceu seus financiadores a filmar em magnífico preto e branco. Resultado: seu melhor filme, num retrato amargurado do americano médio.