sábado, fevereiro 28, 2015

Michel Ciment on Stanley Kubrick


Michel Ciment: Você foi criticado, há alguns anos, por fazer filmes que não tratavam de problemas individuais. Seu projeto de filmar Breve Romance de Sonho de Schnitzler, e depois a realização de Barry Lyndon e hoje de O Iluminado o levaram, ao contrário, a mostrar relações em uma família ou em um casal.
Stanley Kubrick: Talvez, mas não foi proposital. É difícil, para todo cineasta que não escreve roteiros originais, fazer uma escolha, e quanto mais filmamos, mais o leque das escolhas parece reduzido. É difícil achar algo que nos estimule, que nos dê alguma esperança de interessar os outros, e que já não tenhamos filmado.
Por outro lado, quando foi outra pessoa que escreveu a história, você tem a experiência da primeira leitura, com impressões que nunca mais sentirá. E o juízo que você faz do relato é, a meu ver, mais preciso do que se você mesmo fosse o autor. Acontece o mesmo quando você termina um filme, é a pior situação para você ter uma opinião sobre ele. Claro que você pode refletir a um nível quase tático: “Estamos dizendo duas vezes a mesma coisa?”, “Está bem feito?”, “É visualmente interessante?”. Mas você não tem de jeito nenhum a mesma impressão que uma pessoa que vê o filme pela primeira vez. Por outro lado, quando trabalhamos sobre a história de outra pessoa, falta um determinado engajamento emocional.
Eu gostaria tanto de poder ver meu filme pela primeira vez. Não posso imaginar o que é ver um de meus filmes. Não faço a menor ideia da maneira como as pessoas reagem diante deles e nunca posso sentir o que elas sentem.

Parece que você quer realizar um equilíbrio entre o emocional e o irracional, e pensar que o homem deveria admitir a presença de forças irracionais em si mesmo, mais do que tentar reprimi-las.
A hipocrisia do homem o cega sobre sua própria natureza e está na origem da maioria dos problemas sociais. Em minha opinião, a ideia de que a causa da crise da sociedade está nas estruturas sociais mais do que no próprio homem é perigosa. O homem deve ter consciência de sua dualidade e de sua fraqueza para evitar os piores problemas pessoais e sociais.

É uma incompreensão dessa ordem que fez com que Laranja Mecânica fosse mal interpretado.
Com certeza é impossível acreditar – a não ser que se quisesse fazer de Laranja Mecânica um filme perverso – que eu era favorável a Alex. Eu apenas tentei apresentá-lo como ele se sente e como se vê. Evidentemente, em um determinado momento, surge certa simpatia por ele. Como Alex estava em conflito com pessoas tão más como ele, mas de outra maneira, era possível pensar, se fizéssemos uma análise rápida do filme, que havia mais simpatia por ele. Mas como é uma história satírica – e a natureza da sátira é apresentar o falso como se fosse verdadeiro -, não vejo como um ser inteligente poderia achar que Alex era um herói.

Jack, o personagem principal de O Iluminado, passa por uma crise que o torna vulnerável.
A natureza de seus próprios problemas psicológicos o preparou para se submeter às vontades do hotel e ele não precisa muito para sentir raiva e frustração extremas, dirigidas contra si mesmo, contra sua mulher e contra seu filho. Ele se decepciona amargamente consigo mesmo, e sente apenas desprezo por sua mulher e ódio de seu filho.
Estando em uma situação que o expõe às forças más do hotel – e este é o aspecto sobrenatural da história -, ele se torna o instrumento perfeito da vontade dela.

Os encontros que eles têm não são, para você, simples projeções de seu psiquismo?
Minha interpretação da história é que ela é real: há realmente assombrações; Grady falou realmente com Jack e ele esteve antes naquele lugar. Para o interesse da história, considero que tudo é verdade.

E quando o filme ficou pronto?
Ao contar essa história, você diz: foi o que aconteceu. E tenta torná-la o mais real possível. Senão, é preciso desistir de encontrar uma explicação totalmente racional para acontecimentos sobrenaturais.

Você apela bastante para sua racionalidade, gosta de ampliar seus conhecimentos, mas em 2001 e em O Iluminado você mostra os limites do saber intelectual. É uma confirmação de que William James chama de “os resíduos inexplicáveis de nossa experiência”.
Com esse tipo de história entramos em um campo onde não apenas a exploração intelectual chega ao fim, mas onde ninguém pode dizer se o que acontece é verdade – e menos ainda explicá-lo. De um ponto de vista dramático, podemos simplesmente dizer: “Se fosse verdade, como aconteceria?”, e não é possível ir mais longe. Gosto dessas passagens do relato em que a razão é de pouca ajuda. A racionalidade o leva às fronteiras dessas áreas e, em seguida, só lhe resta explicar o nível poético ou musical. Só temos consciência do campo onde a razão pode se exercer, temos a impressão de que ele não é muito extenso e, embora essa experiência poética não tenha muito valor, com certeza somos tentados a realizá-la. Temos que tomar consciência dos limites da racionalidade pura e também levar em conta os sentimentos das pessoas diante dos elementos alheios a essa racionalidade.

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Pialat, Dardennes e Bresson


Infância Nua (Maurice Pialat, 1968) - meu primeiro Pialat. Um olhar menos romântico e nostálgico sobre a infância, que lembrou muito a minha própria. O "peso da existência" exerce um efeito extraordinário sobre o protagonista, envolto frequentemente com as consequências das suas próprias diabruras e com o julgamento impassível dos seus tutores (cujas cenas são realmente desconcertantes). O personagem da avó equilibra essa relação de confronto dele com o mundo, numa das grandes representações dessa figura registrada em película (aqui, particularmente, o emprego dessa expressão ainda faz sentido).

Pialat não possui uma estilística sistemática ou um programa textual recorrente ao qual o crítico pode se ater para analisar sua obra. O estilo de Pialat não é uma forma particular de compor o quadro, movimentar a câmera ou conduzir a narrativa. Tampouco há motivos visuais recorrentes na obra de Pialat, ou cores de predileção. Sua mise en scène frustra os cinéfilos acostumados a encontrar a assinatura estilística de um autor nos lugares em que ela mais comumente se manifesta (a linguagem visual, a composição plástica, a “escritura”). O estilo-Pialat é tão somente sua maneira particular de atacar o real, seu olhar direto e nada indulgente para tudo o que está diante da câmera.
Luis Carlos Oliveira Jr.


Dois dias, Uma noite (Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2014) - eu vejo o pouco entusiasmo da crítica com o novo filme dos irmãos belgas se manifestar da mesma forma na obra de Woody Allen. Argumenta-se que o cinema deles atingiu um esgotamento estilístico/temático, necessitando uma oxigenação. É como dar murro em ponta de faca. O que não falta nessa amostragem é relevância. A meu ver, o domínio narrativo permanece afiadíssimo, bem equilibrado entre o controle e a espontaneidade. Tomara que a indicação ao Oscar de Marion Cotillard desperte a atenção dos desavisados à obra pregressa da dupla. É uma experiência e tanto.



Uma Mulher Delicada (Robert Bresson, 1969) - um Bresson menos comentado, nem por isso menos relevante. A primeira adaptação formal de uma obra de Dostoiévski, cuja influência já permeava o horizonte do seu trabalho. Embora seja um Bresson mais acessível, eu não diria que seja uma boa porta de entrada para o seu universo. O estilo lacônico do diretor pode afastar os entendidos em DR's, habituados a uma lavagem de roupa histriônica. Seus "manequins" quase não se manifestam, enclausurados pela "não relação" desenvolvida na tela, bem como pela rigidez habitual de Bresson. A mulher delicada do título dificilmente seria uma integrante do Movimento de Maio de 68, cujas posições ideológicas sustentadas eram contrárias à ideia de matrimonio (mesmo que isso não representasse formalmente uma bandeira do Movimento). De uma forma ou de outra, a Geração de 68 já nascia morta.

domingo, fevereiro 08, 2015

Margaret (Kenneth Lonergan, 2011)


Desde que vi Conte Comigo (2000), quando da sua estreia, aguardava o momento em que Kenneth Lonergan se comprometeria com outro projeto, tamanha a minha admiração pela abordagem do seu material cinematográfico: o ser humano. Mesmo tendo gravado Margaret há mais de dois anos da rede de programação do Telecine, só o vi há alguns dias. Imagino que o atraso para o lançamento do filme em quase 6 anos (li em algum lugar que a produção seria de 2005), de alguma forma deve ter influenciado o resultado final (Martin Scorsese e Thelma Schoonmaker foram chamados para contribuir no processo de edição, quando as diferenças entre o estúdio e o diretor passaram a ser julgadas no âmbito jurídico). Em determinados pontos da narrativa, sobretudo aqueles que registram o cotidiano da vida estudantil da protagonista (a sala de aula, os professores, as discussões, os flertes), parece que o filme vai sair dos trilhos e se embrenhar por um atalho que não lhe permitirá retornar com fôlego ao seu eixo central: o dilema moral da personagem central causado pelo falso testemunho dado às autoridades, logo no início do filme, que poupou o encarceramento do motorista de ônibus envolvido no acidente de trânsito, mas custou a vida de uma transeunte. Aos poucos vai ficando claro que o diretor pretende, por meio do tormento vivido pela protagonista, tecer um panorama das relações humanas contemporâneas na cidade que foi assolada pelos atentados terroristas de 11 de setembro. Nenhum personagem é poupado, não há  comiseração envolvida, ainda que ninguém possa argumentar que Lonergan trate seus personagens sem compaixão.

O filme é simplesmente o desdobramento de uma ação perpetrada pela protagonista e as suas consequências sobre todos os indivíduos que mantêm uma relação com ela. É um registro da forma como o meio influencia a sua percepção de mundo e como ela reage em decorrência dessa influência - sem nunca perder de vista as imperfeições inerentes à nossa espécie. Ela erra muito, praticamente o tempo todo, mesmo quando se esforça procurando acertar. O papel da protagonista é um presente imensurável para a jovem Anna Paquin, que surpreende interpretando o que pode ter sido o personagem da sua vida (mesmo levando em conta que ela seja nova e ainda tenha uma longa carreira pela frente). A mão do diretor se faz bem menos presente (num bom sentido) do que nos filmes de Asghar Farhadi, que manipula a relação com o espectador confiscando informações dos personagens, reveladas a conta gotas conforme a sua conveniência (a fim de sustentar o interesse do público). Em Margaret não existe tal recurso, Lonergan desenvolve sua narrativa às claras conduzindo seus personagens como se eles fossem senhores dos seus destinos, seguro de que o controle do todo permanece irrestritamente sob o seu jugo. Excelente filme.