quarta-feira, setembro 30, 2015

Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015)


Eu queria ter gostado mais de Que Horas Ela Volta?, por mais que eu o considere um bom filme. A sombra das outras produções de Anna Muylaert influenciaram a minha percepção de forma que eu sinto falta do surrealismo do Durval Discos (2002), que me surpreendeu demais, e do clima de tensão crescente de É Proibido Fumar (2009), evoluindo para um suspense em seu desfecho. São filmes mais difíceis de rotular, se é que existe alguma vantagem nisso. A rica interação entre os personagens continua a representar a essência do seu trabalho, que não seria suficiente se não houvesse talento para dirigir os atores. Não é fácil desarmar o espectador das figuras públicas de Glória Pires e Regina Casé, que deixam a vaidade em casa para interpretar pessoas absolutamente comuns, contrárias ao universo de glamour que elas habitam.

Suas estórias se passam em ambientes fechados (sejam eles uma casa, um apartamento ou um carro), e contam sempre com um elemento externo, representado por um dos personagens, que entra em cena para romper com a letargia do protagonista. Desta vez o "tema" do filme dominou a pauta de discussões, trazendo à tona o conflito de classes (bem como o conflito geracional), refletindo a condição atual da doméstica brasileira - e talvez mais importante, porém menos evidente, a condição atual da mulher brasileira, já que são as três personagens femininas que empurram a narrativa.

domingo, setembro 20, 2015

Blade Runner (Ridley Scott, 1982)






Desde sábado passado retrasado só faço pensar na sessão de Blade Runner da Série de Clássicos do Cinemark. Ainda hoje me recordo da única vez que assisti ao filme, numa TV plana tubular de 29 polegadas, quando ainda morava com os meus pais, há mais de vinte anos. Na ocasião, eu me esforçava para "consumir" alguns dos filmes canônicos da sétima arte ao mesmo tempo em que devorava as resenhas publicadas em livros dedicados a esmiuçar o entendimento deles (sem o recurso da internet, havia a publicação diária dos jornais impressos ou os livros específicos). Um desses livros, encontrado na estante da biblioteca da faculdade, explorava a produção dos anos 80 ("O Cinema dos Anos 80", organizado por Amir Labaki) e acabou tornando-se uma verdadeira referência pra mim. Por meio dele descobri que o policial Deckard (Harrison Ford) acumulava indícios de que também pudesse ser um replicante (a ambiguidade do personagem encontra defensores fervorosos dos dois lados), bem como de que o filme poderia ser interpretado por um viés religioso. Embora essa leitura despertasse uma necessidade de se voltar ao filme para poder constatar essas revelações, esse texto "explicativo", que trazia, inclusive, os bastidores da produção conturbada, acabou ficando maior do que o filme na minha memória.

Eis que agora, 20 anos depois da sessão meia boca que fiz em casa, mesmo contando com o melhor recurso de reprodução da época, o VHS, voltei a ele em uma condição mais do que apropriada. Como eu já conhecia o conteúdo narrativo do material (fomentado sobretudo pelo livro supramencionado), investi a minha fruição na riqueza visual do filme. Não sei se existe um jeito adequado de experimentá-lo, só estou certo de que ele não cabe na tela da TV. Embora Ridley Scott tenha se recusado a "atualizar" a tecnologia do seu filme digitalmente (exatamente como George Lucas fez com a trilogia "Star Wars"), mesmo "datada", a concepção visual do filme permanece revolucionária. As produções que vieram posteriormente são todas, em maior ou menor grau, filhas bastardas de Blade Runner. O artesanato empregado pelo visionário "visual effects" Douglas Trumbull não envelheceu, bem como preserva uma autenticidade que as imagens geradas por computador (os CGIs) atualmente não se mostraram capazes de emular com desenvoltura. Os CGIs hoje em dia resultam normalmente fakes demais. A Los Angeles de Blade Runner é demasiadamente palpável, de forma que até hoje continua a representar o futuro sombrio imaginado por Ridley Scott e seus colaboradores, seja ele no vindouro ano de 2019, conforme a narrativa fílmica, ou bem mais adiante que isso.

Não só o “visual effects” abordado no parágrafo acima é memorável, bem como a composição do quadro (o preenchimento do ecrã). O mundo está superpovoado, com gente circulando por todas as frestas da imagem captada, despertando uma sensação desconfortável de enclausuramento. A cidade não comporta seus cidadãos. Os chineses já dominavam a cena, transformando Los Angeles num reduto cultural da sua influência, manifestando-se na culinária ou nos imensos outdoors televisionados que encobrem a cidade. A chuva ácida incessante (uma preocupação onipresente na década de 1980), amplia a sensação de decadência e falência do modelo de exploração planetária, que confiscou dos residentes remanescentes a luz solar reconfortante.

Outro componente que contribui imensamente para a atemporalidade do filme é a magnífica trilha sonora de Vangelis. Ela dispensa um tema principal ou um "refrão", recorrente em partituras que se descolam da sombra do filme que as projetou. O músico John Williams, colaborador frequente de Steven Spielberg, foi um mestre nesta arte de "criar temas" memoráveis. Em Blade Runner, cada cena é orquestrada individualmente, sem sacrificar a unidade do todo. O tema dos créditos finais só faz reforçar o clima de ameaça e insegurança que o filme se esforçou por disseminar.

A sensação despertada por esses fatores combinados resulta numa experiência pontual redimensionada pela memória atemporal, de forma que independente do momento que ela se concretize, o futuro terá sempre a cara de Blade Runner.