quinta-feira, dezembro 31, 2015

Um Amor a Cada Esquina (Peter Bogdanovich, 2014)


O tempo anda escasso nesse final de ano, quando anteriormente eu conseguia colocar em dia quase tudo que havia ficado para trás. Vi esses dias Um Amor a Cada Esquina e me diverti bastante com um Bogdanovich que já não filmava há algum tempo. Mesmo com o acesso às clássicas screwball comedies de outrora cada vez mais fácil é sempre um deleite encontrar uma releitura de um (sub)gênero tão querido à altura dos seus melhores exemplares.

O texto do Gilberto Silva Jr. para a Revista Interlúdio contribuiu para que eu reposicionasse o filme como o primeiro da minha longa lista de prioridades cinematográficas. A leitura anterior a sessão serviu para aguçar os meus sentidos e a posterior para reforçar a merecida valorização que o Gilberto lhe atribuiu. Aqui vai o link e abaixo a reprodução.

Por Gilberto Silva Jr.

A imensa maioria da produção do cinema americano contemporâneo é composta de filmes que poderiam ser dirigidos por qualquer um. É, portanto, ao mesmo tempo, um alento e um choque quando surge um filme que só poderia existir quando dirigido por um cineasta específico. Um Amor a Cada Esquina é um desses casos, cada vez mais raros: um filme que, como se constata em seu resultado final, não faria sentido algum sem a visão pessoal de Peter Bogdanovich. Um alento para os amantes de cinema, que cada vez mais se vêm privados da oportunidade de assistir a produtos de entretenimento concebidos com tamanha delicadeza. Um choque para a indústria, que fica sem saber o que fazer com um produto que não se encaixa em qualquer dos seus padrões industriais e mercadológicos.

Bogdanovich é um cineasta que, tendo em vista sua história como crítico e, acima de tudo, fã de um cinema clássico, carrega para todos os seus filmes a bagagem de um passado acumulado, sem perder de vista o momento presente. Consegue, quase sempre, atingir a árdua missão de ser nostálgico sem se tornar saudosista. O padrão unicista que impera na produção hollywoodiana das últimas décadas segue lhe permanecendo algo estranho, o que acabou por deixá-lo sendo uma figura cada vez mais à margem, tornando sua carreira errática por mais de quatro décadas. 

Portanto, ao assistir a Um Amor a Cada Esquina, nos transparece o fato de Bogdanovich ter agarrado com unhas e dentes a oportunidade de realizar um filme que tenha realmente a sua cara. Em tempos onde manuais de escrita cinematográfica demandam de um roteiro uma suposta “coerência”, assistimos a uma comédia que manda essa “coerência” às favas, onde o que importa é a graça removida de cada sequência, burilada em toda sua individualidade. Retoma os fundamentos da screwball comedy, sedimentados há cerca de oito décadas por roteiristas como Ben Hecht e cineastas como Howard Hawks, e aplica a sua visão pessoal do universo contemporâneo do entretenimento. Disso surge uma experiência praticamente única no cinema atual, calcada principalmente no estranhamento. Seja do estranhamento do autor perante padrões de comportamento que lhe soam cada vez mais distantes, seja do estranhamento do espectador diante de um produto que, apesar de soar como um filme diferente de tudo que se tem assistido ultimamente, se revela fascinante a cada momento. 

O padrão estabelecido em privilegiar o conceito de cada sequência como um todo, que surge no roteiro assinado por Bogdanovich e sua ex-esposa Louise Stratten, se revela de tamanha eficiência que, mesmo quando surgem, ao longo do filme, saltos narrativos que parecem estar mais relacionados a cortes na sala de montagem ou a possível interferência dos produtores, estes surgem perfeitamente diluídos na concepção do todo. Mais um retorno aos princípios da essência do cinema clássico, onde a montagem exerce inequívoca corresponsabilidade na geração do efeito cômico. 

O que nos leva a não deixar de destacar que Um Amor a Cada Esquina é acima de tudo um filme extremamente engraçado, no qual, além de unir com maestria todos os pilares do artesanato cinematográfico (mise-en-scène, roteiro, montagem), Bogdanovich consegue extrair do elenco uma total compreensão de sua proposta, onde duas intérpretes conseguem ainda brilhar acima do conjunto onde impera a excelência: se Jennifer Aniston, estrela da indústria, tem aqui, em um papel coadjuvante, sua melhor atuação em cinema, é a protagonista, Imogen Poots, que, com toda sua juventude, faz um trabalho digno de antologia. É como se Carole Lombard não tivesse morrido em seu apogeu (aos 33 anos, em 1942), atravessasse décadas, chegado aos nossos tempos e rejuvenescesse por um toque de mágica, preservando toda sua malícia, mas recuperando uma doce inocência de quem experimenta novas sensações. Acompanhar as expressões faciais e modulações vocais de Pots é mais um prazer à parte nesse filme ímpar que, em seu renovado classicismo, se revela hoje tão moderno quanto Essa Pequena é uma Parada ou Muito Riso e Muita Alegria o foram, respectivamente, em 1972 e 1981.

sábado, dezembro 26, 2015

De Volta ao Jogo (Chad Stahelski e David Leicht, 2014)


Pra variar, eu não estava botando muita fé nesse entusiasmo todo com que De Volta ao Jogo vinha colhendo elogios de boa parte da crítica, chegando a constar em algumas listas de melhores de 2014. Cheguei a abrir mão de vê-lo no cinema, certo de que seria mais um filme de ação genérico. Honestamente, desconfiei que um filme protagonizado por Keanu Reeves pudesse realmente gozar desse status (o preconceito dando as caras novamente). No final das contas me dei mal. É um p... filme.

O roteiro se restringe ao básico, estabelecendo logo nos dez primeiros minutos as premissas as quais permanecerá fiel até o fim. É o velho tema da vingança levado com muito vigor e muita inventividade. Trata-se basicamente de um matador profissional aposentado (mais por opção do que por tempo de serviço), o tal John Wick do título original (Keanu Reeves), que perdeu a mulher numa batalha contra uma doença, mas se vê novamente exercendo o ofício do qual se afastara quando recebe a visita indesejada do filho do seu antigo contratante que o subtrai dos seus itens mais estimados.

Em nenhum momento o roteiro perde o foco da empreitada, fazendo da caçada um subtexto perfeito para empilhar uma cena de ação melhor do que a outra. Joga a favor dos envolvidos com a produção e a direção o fato de serem antigos dublês que conhecem bem a dinâmica desse gênero. O hotel que serve de abrigo aos matadores quando estes estão a serviço é um achado. Nele orbita uma galeria de personagens dos mais criativos, responsáveis por manter ativa a engrenagem desse comércio de vidas, a ponto de contar com um médico de plantão para atender àqueles que prescindiram da sorte no exercício de suas missões.

Os códigos que regem o convívio desses tipos, e que condizem com as premissas estabelecidas no início, são reforçados no segmento do hotel. O filme respira o tempo todo dentro dessa bolha que ele mesmo criou, mas em nenhum momento sofre de asfixia ou se esgota. O tiroteio noturno na boate é uma das melhores cenas de ação dos últimos tempos, comparável ao de Colateral (2004), de Michael Mann.

sábado, dezembro 19, 2015

Itinerância da Mostra 2015



Este ano tive de abortar minha ida a São Paulo para usufruir da Mostra em virtude da abertura de um novo negócio ainda no primeiro semestre e desde já vislumbro dificuldades para comparecer a próxima edição em função da chegada de uma nova filha.

Sendo assim, me sobrou de consolo a Itinerância da Mostra em Ribeirão Preto, que trouxe boas alternativas na seleção, cujos títulos que mais me interessavam consegui ver: o derradeiro Manuel de Oliveira, Visita - Ou Memórias e Confissões, filmado em 1982, mas lançado após o falecimento do diretor a pedido do próprio, e o último Ermanno Olmi, Os Campos Voltarão, que aborda as dificuldades de um bando de soldados ocupando uma trincheira na fronteira da Itália com a Áustria, em plena Primeira Guerra Mundial. Ambos são filmes curtos de pouco mais de uma hora de duração.

O primeiro captura o fantasma do diretor falecido em imagens semi espirituais num passeio pela casa onde o mesmo passou boa parte da sua vida e cuja influência se faz presente em seus filmes. A leveza das imagens captadas atrelada a serenidade do discurso de Manoel coloca o espectador num estado de transe, na fronteira onde o sonho e a realidade se misturam a ponto de se tornarem indistinguíveis. Um dos pontos altos é o relato breve e apaixonante da sua esposa, que emociona por sua singeleza e honestidade.

Ermanno Olmi aborda um ambiente de desesperança assombrado pela presença da morte. A trincheira de Olmi é bem diferente da trincheira de Stanley Kubrick em Glória Feita de Sangue (1957). Nessa versão mais recente praticamente nada acontece, tudo não passa de um exercício de espera agonizante. O tempo é implacável. Por essas e por outras quando vem o bombardeio o efeito é mais impactante, lembrando um pouco Verão Violento (1959), de Valério Zurlini. Apesar da jornada desgastante em meio a um frio congelante, a sensação que fica ao término é mais positiva que negativa.